quarta-feira, 22 de junho de 2011

O RUIR DAS HORAS

Na lembrança, qual um palco imaginário,
o cenário de coisas que vivi,
algumas pessoas, cães, carinhos que não foram percebidos
por entre as metáforas não entendidas
enquanto a vida era apenas uma ordem.


Na desordem da natureza do tempo que nos deteriora,
perdemo-nos um pouco a cada instante
e ainda à caça da felicidade para um futuro distante
sem vermos que não vemos nem mesmo o momento seguinte.


A casa a ruir abriga-nos dos sonhos que detemos
em cada quarto que nos prende
a rende-nos às nossas verdades e imaginários
e em cada um a quarta parede cai
desvendando um cenário de expectativas
disperdiçadas no que não sentimos no agora
que se esvae
como se fosse a lembrança
daquilo que jamais existiu.

Paulo Franco

terça-feira, 1 de março de 2011




Como um rio

Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.
E de lavar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva,
e lava.

Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.

Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir,
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.

Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
de águas impuras
que afloram a escondida
verdade nas funduras.

Como um rio, que nasce
de outros, saber seguir,
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.

Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.

Thiago de Mello

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A menina selvagem

A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.

Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.

Henriqueta Lisboa

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance de um poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antonio Cícero

Sonhar

Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço,
Num vôo poderoso e audaz da fantasia.

Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante paço
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.

É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar, constantemente, o olhar ao céu profundo.

Sonhar é ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.


Helena Kolody

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Poema da solidão




Rente às paredes do corpo
solidificou-se a noite
Não dela, brotou da carne
o clima alucinatório
A noite não cessará!

Roça a casa o rio mudo
que nas sombras se extravia
Na sua líquida noite
arrasta corpos translúcidos
que rolam por sobre flores.
Noturnas margens. Silêncio.
O rio me quererá.

A névoa me limita os olhos
e dissipa as ventanias.
A lua fantasmagórica
de movediço contorno
floresce nas águas fundas
A lua me acolherá.

Ferreira Gullar

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A você, com amor




O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar...

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...

E a música inaudível...

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.

Vinicius de Moraes