domingo, 30 de novembro de 2008


TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra partes
e sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte-
que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar

sábado, 29 de novembro de 2008

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Charneca em flor

Enche o meu peito,num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca

quarta-feira, 26 de novembro de 2008


O MITO

É vasto
o canto em que te guardo
neste coração de pedra.

Vasto silêncio
no meu grito.

Vasta emoção
que no meu peito
medra
de infinito.

E se és razão
em mim
pra desapego,
eu tenho medo
e neste canto
te transformo
em segredo e mito.

Paulo Franco

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Experimentando a manhã dos galos

... poesias, a poesia é
-é como a boca
dos ventos
na harpa
nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha a noite
raíz entrando
em orvalhos...
floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca
cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém
o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...

Manoel de Barros

domingo, 23 de novembro de 2008


NÃO!

Não!
Não permita
Que te imponham
Condições
Não permita
Que te forcem
Provações
Não!
Reaja, lute
Não permita
Não!
Não deixe
Que te neguem
O direito
De negar
Somente possuir
A ordem
De dizer sim...
Ao passo que
Todos temos
Que compreender
A grande arte
De simplesmente
Dizer não!
Discuta, ouça
Fale o que pensar
Prepare-se para
Aprender
Mudar...
Metamorfosear
O ser
Como Raul cantou
Porque não ser
Como o raio de sol?
Brilhar na escuridão
Limpar a ignorância
Com educação
Ao ver uma criança
Um futuro crer
Onde todos tenhamos
O direito
De dizer
Não!

Escrito por Alfredo Rebello

JARDIM INTERIOR

Todos os jardins deviam ser fechados,
com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.

Oração ao Tempo

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...

O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...

Caetano Veloso

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quarta-feira, 19 de novembro de 2008


Passarinho

Cantar como um passarinho
De manhã cedinho
Lá na galha do arvoredo
Na beira do rio
Bate as asas, passarinho
Que eu quero voar
Bate as asas, passarinho
Que eu quero voar
Me leva na janela da menina
Que eu quero amar
Me leva na janela dela
Que eu quero espiar
Me leva na janela da menina
Que eu quero cantar
Cantar como um passarinho
De manhã cedinho
Lá na galha do arvoredo
Na beira do rio
Cantar como um passarinho
De manhã cedinho
Lá na galha do arvoredo
Na beira do rio
Cantar como um passarinho
Como um passarinho
Cantar como um passarinho
Como um passarinho
Como um passarinho

Composição: Tuzé de Abreu

Paulo Leminsk

Tudo é milagre. Não precisa curar leprosos. Não preciso de milagres desse tipo. A cor amarela, para mim, é um milagre. A percepção é um grande milagre. Poder ouvir um som, mi bemol, é um milagre. O azul, as experiências biológicas, o gosto da batata frita, são milagres. Dar três trepadas numa noite é um milagre. O mundo é cheio de milagres. E as pessoas ficam procurando... As pessoas querem circo. Não preciso de circo, o zen não precisa de circo. O zen diz: "é aqui e agora".

.

Manoel de Barros

no escritório de ser inútil
passo horas descascando palavras.
Vou até o caroço delas.
Ontem levei a palavra "alma" para descascar.
Descobri que é uma palavra linda,
escura e de olhos baixos

Mário Lago

Eu fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo:
nem ele me persegue, nem eu fujo dele.
Um dia a gente se encontra....

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Caixinha Mágica

Fabrico uma caixa mágica
para guardar o que não cabe
em nenhum lugar:
a minha sombra
em dias de muito sol,
o amarelo que sobrado girassol,
um suspiro de beija-flor,
invisíveis lágrimas de amor.
Fabrico a caixa com vento,
palavras e desequilíbrio,
e para fechá-la
com tudo o que leva dentro,
basta uma gota de tempo.
O que é que você queres
conder na minha caixa?

Roseana Nurray

Gosto quando te calas

Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voa
doe parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longinqüo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.

Pablo Neruda

Chico Xavier

Nossos problemas nem sempre são tão grandes quanto a nossa incapacidade de nos desfazermos deles...Reflitamos nos problemas cotidianos, categorizando-os por recursos renovadores.À frente de qualquer desafio, recordemos que todo problema é um convite da vida, em nome de Deus, para que venhamos a compreender mais amplamente, melhorar sempre e servir mais.

Emmanuel

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Poema

O grilo procura no escuro
o mais puro diamante perdido.
O grilo

com as suas frágeis britadeiras de vidro
perfura
as implacáveis solidões noturnas.

E se o que tanto busca só existe
em tua limpida loucura

que importa?

isso
exatamente isso
é o teu diamante mais puro!

Mário Quintana

sexta-feira, 14 de novembro de 2008


Caminho

E é perto da borda
Do infinito
Abismo
Montanhas em nuvens
Altas
Que se
Aprende a aprender
E é antes doFim do
Começo da
Grande trilha
Que se ensina
O que seAprendeu
E mesmo
EntãoSe do outro lado
Da borda
Não em cima
Não em baixo
É mais profundo
É mais
Do que o mais alto
Mesmo
Então
Se pode aprender
Mesmo
E então
Se pode ensinar
Para poder viver
Aprender
Transmitir
Compartilhar
E é desde o começo
Até o fim
O mesmo caminho
A mesma harmonia
Que só tem começo
Que poderá ser
Fim
Mas deve ser energia
InacabávelImutável
A serviçoE a servir
Como é o seu sumo
Substância-sentimento
Coração
Denominarei seu poder
Esclarecerei
O que quero dizer
E direi
Depois de tantas palavras
Que procuro ter
Em constante e diário
Existir
Um só caminho a seguir
E esse caminho
É o Amor

Alfredo Rebello

Se cada dia cai

Se cada dia cai,
dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade
está presa.
há que sentar-se
na beirado poço
da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

Pablo Neruda

Beto(meu irmão) e seu filho Hugo


Blues

Tem muito azul em torno dele
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
Os pés de lótus de Krishna
Tem muito azul em torno dela
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
As mãos de rosa de Iemanjá
Os pés da Índia e a mão da África
Os pés no céu e a mão no mar

Péricles R. Cavalcanti

Simplesmente amor, nasceu sem pedi licença...


Fernando Pessoa

Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.
O que confesso não tem importância, pois nada tem importância.
Faço paisagens com o que sinto.

O Medo

Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas;
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
Vadeamos.
Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
Este célebre sentimento,
E o amor faltou: chovia,
Ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo... Nevava.
O medo, com sua capa,
Nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
Meu companheiro moreno.
De nos, de vós, e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
Vem ó terror das estradas,
Susto na noite,
receio De águas poluídas.
Muletas Do homem só.
Ajudai-nos,
lentos poderes do Láudano.
Até a canção medrosa se parte,
Se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
Duros tijolos de medo,
Medrosos caules,
repuxos,
Ruas só de medo, e calma.
E com asas de prudência
Com resplendores covardes,
Atingiremos o cimo
De nossa cauta subida.
O medo com sua física,
anto produz: carcereiros,
Edifícios, escritores,
Este poema,
Outras vidas.
Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
Recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
Eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
Dançando o baile do medo.

Carlos Drummond de Andrade

Canto do Povo de Um Lugar

Todo dia o sol se levanta
E a gente canta ao sol de todo dia
Finda a tarde a terra cora
E a gente chora
Porque finda a tarde
Quando a noite a lua mansa
E a gente dança venerando a noite

Caetano Veloso

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A FALTA QUE AMA

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à to
ao pensamento, na luz?
E por que nunca se esco
ao tempo, chaga sem pus?

O inseto petrifica
dona concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

Carlos Drummond de Andrade

POEMA

O grilo procura
no escuro
o mais puro diamante perdido.

as implacáveis solidões noturnas.

E se o que tanto busca só existe
em tua limpida loucura

-que importa?-isso
exatamente isso
é o teu diamante mais puro!

Mário Quintana